sexta-feira, 16 de março de 2012

Francis


Na carteira de identidade, uma foto com a camiseta do Slayer. O cabelo em desalinho, grandes cachos pretos povoavam a testa e se emaranhavam em várias direções- para cima, para os lados. A louca bagunça parecia em harmonia com os olhos sagazes, bem marcados com o preto forte dos cílios. Ele olhavando para a objetiva, as sobrancelhas cerradas, os lábios tensos e um aspecto grave. Por detrás dos olhos duros, pensamentos tão enrolados e caóticos quanto os cabelos que os cobriam e encobriam. Em sua inocente juventude, o espanto criava espaço para a loucura, crescente e presente e parte de sua própria natureza. Ele compreendia que não poderia ser o artista da representação enfeitada artificial e serena. As garatujas horríveis, o humor cáustico e o terror sombrio não eram coisas presentes somente do lado de dentro, em uma caverna obscura e de acesso impossível, mas belezas a serem admiradas e vivenciadas na crueldade clara do meio-dia.
Francis sabia que o açougue vendia carne humana. Podia sentir o cheiro estranho de uma carne que não era de vaca que não era de porco que não era de frango que não era que não era. Canibalismo. Assassinatos aconteciam todos os dias, pessoas desapareciam e ele não poderia confiar que todas essas pessoas eram calma e respeitosamente enterradas em um campo pacífico. Ninguém é assim tão ético. Sendo ele próprio também feito de carne, poderia apenas concluir que ele também estava no alvo dos açougueiros canibais. Tinha certeza de que aquelas costelas estavam pequenas demais para ser de boi e que ele não permitiria ser devorado como uma caça.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Gabriel


Gabriel. Tem nome de anjo. Nome de elogio. Um elogio angélico é quase como uma manhã praiana, com uma brisa terral e aquele céu ainda rosado da aurora. Eu até mesmo escuto os bem-ti-vis cantando. Bem te viiiiiiiii. Um perfume fresco no ar de uma manhã branca. O perfume fresco de um elogio angélico. Lindo. Assim parecido com o dono do nome.
Gabriel é lindo. Tem um riso bonito e uns olhos muito claros. Tem um caminhar suave que combina com o formato das pernas, com o formato da bunda. Gabriel gosta de arte e de coisas bonitas. Até o nome do dono deve se admirar da harmonia que Gabriel emana, sua beleza e equilíbrio.
Conheci Gabriel quando na aula de canto. Eu namorava um bronco, um bruto. Amor da minha vida e o seria até hoje, não tivesse morrido de overdose. Eu amo os broncos. Gabriel me levava para assistir cinema. Ele gosta de arte e coisas leves. Eu era mais nova e menos louca. Mais dependente de fazer as pessoas gostarem de mim pela minha capacidade de agradá-las. Meu namorado bronco gostava quando eu fingia que gozava e eu gostava quando ele gostava. Mas não gozava. Não gozei com Gabriel tampouco. Mas isso foi bem depois.
A aula de canto foi linda e nada aconteceu comigo e Gabriel. Ele era certinho o suficiente para me abraçar apertando forte os seios, e não me chamar para sair enquanto eu namorasse. Um dia eu gritei com ele de um jeito bizarro. Loucura: presente e crescente em mim. Anos depois nos encontramos e sinceramente me arrependi por ter gritado. Mas não pelo que eu gritei. Amores brutos, se ele não sabia como era, eu é que não iria explicar. Nós saímos mais de uma vez, ele me levou para ouvir choro, sem tomar uma cerveja. Depois o encontrei no apartamento em que ele morava sozinho, pois estava fazendo uma terapia intensiva. Ele jura que isto mudou a vida dele. Gabriel é budista. Gabriel não bebe e tem asco a cigarro. O que Gabriel- manhã com brisa marítima e canto de pássaros- o que Gabriel queria comigo é coisa que eu nunca entendi. Será que anjos não sentem cheiro de enxofre?
Sei que transamos no apartamento e foi.. é... A gente tomou suco de amora e acho que ele tinha passado um bom tempo sem um anal, porque ele parecia ter adorado a chance. Gabriel. Manhã de sol manchada com a minha loucura. E com a minha merda também, por que a censura?