sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Carlos


Escolhi fazer psicologia por paixão pela loucura. Não sei, a cada vez escolho uma desculpa nova. Esta é só a mais recente. O curso ensina a chamar doido pelo nome científico. Paranoico, borderline, depressivo. Aquela pompa de especialista e o total descrédito, por dentro e por fora. Porque qualquer dos idiotas diagnosticados é capaz de perceber que os especialistas não sabem de porra nenhuma. Lá de dentro do laboratório não dá pra ver as drogas, não se sente o cheiro da bestialidade, ninguém vê a imundície. Eles fingem entender o incompreensível e os loucos riem das suas interpretações bobas. Em algum lugar da bíblia tá escrito que deus enviou os loucos para envergonhar os sábios. Ah, mas aqueles livros também foram escritos por especialistas especializados em falar merda. Eu quero ao menos escolher qual mentira vou reproduzir.
Meu pai é louco. É um tipo assim sem paixão, sem brilho, sem obras. Do tipo de louco que, se não chegar ao Wernicke-Korsakoff, só serve para entediar os patologistas. Alcoolista. Ahn, tá. Ele passou muitos anos da vida dele bebendo e eu vivi perto o suficiente para afirmar que não teve muita coisa além disso. Ele fez quatro filhos que encheu de vícios, pintou quadros, muros, letras, faixas. Agora fico sabendo de sua vida de vez em quando, se encontro um desavisado pela rua que me põe a par das novidades. Velhas, de sempre.
O vi pela última vez na véspera de ano novo, depois de passar dois anos sumido. Sumido por assim dizer, pois ele sempre esteve presente pra cacete em sua ausência. Assim feito fantasma em casa mal assombrada. Olhando meu pai no último dia do ano, cheirando a hospital psiquiátrico, sem se lembrar muito bem das palavras, poucos dentes na boca. Se ele não se lembrava das palavras, eu também não vou fingir que lembro. Só chorava e dizia "que merda, que merda". Era uma merda mesmo.
Ele estava sujando meu vestido branco.
Louco isso. Sabe aquele resgate do Oedipus Rex? Funciona invertido também. Sou apaixonada pela loucura. A minha e a do meu pai. Tenho direito herdado à loucura, ou achado na rua. Não faz diferença. Esse tipo de herança ninguém inventaria.




quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Gelo


De quando em vez eu tenho esta sensação de cura. É algo evanescente, não dura nem um dia inteiro. De quando em vez o ar gelado enchendo os pulmões até o máximo. Um dia ou outro e aquela saciedade boa, uma calmaria. Parece maconha mas eu juro que não fumei. Não bebi, não fodi. As mesmas músicas no fone de ouvido e a mesma tentativa de fazer o que me propus- só que agora em paz.
Liberdade, pequenina.
Só um pouquinho.

De quando em vez uma paz por dentro e não tem ninguém gritando aqui. De repente chavinha gelada e dá pra pensar melhor. Uma chuvinha gelada, até aquela dor nas costas parece ter arrumado algo melhor pra fazer. Cervinha gelada cairia bem, mas não precisa. Agora não precisa nada. Cadê aquele incômodo- ah, deixa. Gelou tudo.

Redenção momentânea. Não há deus, nenhum adeus, ninguém me perdoou, nada espetacular no vento.
Ninguém me prometeu nada e tudo continua o mesmo.
Calma, calma.
Paciência, Horatio.
A poeira assentando sobre os móveis ainda é feita da minha pele e não há nada de errado nisso.



quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Raiana


senti medo da sua felicidade
voce pulando de alegria - leve leve pousa
medo
o medo me atacou e ele eh irmao da minha violencia
abuse
era aquela alegria solta de menino
e minha vontade era uma camisa de força
trancar voce numa janela
na parede
do hospicio
da cadeia
debaixo do banheiro
sai daqui alegria de cu eh rola
que sua sanidade eh minha loucura
ou voce eh tao burro assim para nao entender?

Ciro


Lembra do garoto bonitinho
que gostava de escrever com métrica
que gostava de desenhar com régua
que gostava de trepar com técnica
Era tão bonitinho o garoto
que subia prédios
e lia freud
         porque achava engraçado
         ter o mundo todo
      E ele tinha
Não morreria afogado
valia demais o desperdício
Mas ele se seguraria na borda
ao bebericar de si próprio
Até te ofereceria um gole
     se você tivesse bastante tempo
     para observar
            Você pode se jogar.